Conversar

– Oi Má. Má?! Ei Mário, responde meu amigo.

– Ah. Oi Clarice, desculpe, estava a contemplar o nada e…

– Contemplar?! Só você meu amigo, bem sabes que aqui não mais fazemos isso.

– Sei, mas, é o hábito…

– Hum. Agora, só falta dizer que é saudade. Saudades são para aqueles viventes em corpo e alma. Já passamos daquela vida. Aqui não tem disso não Mário.

– Não é Isso não Clarice. É que estou mergulhado em dúvidas. Quando estava lá, escrevi muitos textos, que não eram meus, mas de inspirações e sei de lá de quem! Vinham de fora para dentro. Esse de fora, devia ser daqui, não? E se foi, tem gente lá agora que se alimenta de nós?

– De novo, esses velhos hábitos, amigo. Deixa te falar:

“A poesia, Mário, sempre será escrita por lá. E a matéria prima é de lá também. Não tem texto que você escreveu que não tivesse vindo de você, de sua história vivida, sofrida, seus desejos, alegrias e frustações. E se foi poeta do bom que foi, Mário, você bebeu foi de amarguras.

Quem daqui ia te passar sofrimento? Desde que cheguei só vejo o bom trabalho!

Vem cá. Estás é com reminiscências e preocupado com que sua obra seja esquecida. Que não vão lembrar mais de seu anti-herói. Aliás, que nem é seu, pois você tirou foi é do povo.

Deixa te mostrar uma coisa amigo: Conversar!”

– Estou conversando Clarice.

– Escuta direito então homem. O povo continua lendo o que fizemos por lá. Veja aquele grupo Conversar. Sempre se reúnem a mostrar as obras autorais e de convidados. Reúnem-se e declamam obras como chocolates bem doces e sem sair fora da linha; também contam nossa história e com professora. Mas não esquecem de ti Mario. Lembro de uma vez em que você esteve de corpo e alma…e causou furor, é, foi representação, mas teve vibração, não sentistes?

– Senti sim, Clarice. Teve um penetra que era eu cuspido. E era só um sarau para lembrar de mim, de repente, aparece minha figura em carne. E você estava lá também, né amiga? O gozado é quem mais tem declamado sua obra é quem menos gosta de seus textos. Sinal de respeito.

– E acha que eu me importo, Mário? Nem lá e nem aqui.

– E nossos amigos estiveram por lá também, até do estrangeiro. O Pessoa, o Neruda.

– Você é incurável, aqui não tem estrangeiro.

– Só por dizer Clarice.

– É, Mário, o Neruda foi lá e conversou com Jorge e Zélia, nem eu sabia das viagens desses comunas.

– O bom nesse sarau é que sempre lembram de nossos amigos: a Cecília, o Manuel Bandeira e o Manoel de Barros, com sua palavra da terra. Teve o João Cabral, o Drummond e o Leminski.

– E lógico, amigo, o grande mestre Machado.

– Verdade, Clarice. E o Vinícius veio até em modinha cantada por um caminhante, lembra? Música é que não falta, do tempo de hoje e dos velhos, com viola ou piano. Tem até hino.

– E um monte de fazedores e contadores de histórias por lá. Aventureiros do mar, da terra e da alma. Artistas das mãos, dos pés, das ruas. Não se preocupe, amigo, nossa obra está garantida. E estão cuidando para que novos talentos surjam. E sabes que nosso grupo é quem organiza tudo isso lá?

– Que grupo Clarice?

– O das mulheres, claro. Elas vão levando e fazendo histórias.  

– Tem razão. E nós vamos conversando.

– Isso aí amigo. Temos muito que trabalhar e conversar. Vamos andando Mário.

– Agora é que te peguei Clarice. E aqui a gente anda?

Sérgio Sesiki – 29 de julho 2020

Sarau Conversar – 6 anos

Um sarau é feito de poemas, silêncios e pessoas dispostas a deixarem o mistério da poesia revelar tudo aos corações. Vinícius de Moraes

Conheci o sorriso da Lígia na primeira semana de 2015 num almoço de escritoras. Sentamos frente a frente, o papo emendou como se nos conhecêssemos há anos. Marcamos um almoço  para conversar sobre nossos livros, ela acabara de lançar Fora da Linha.

Dias depois, o mesmo sorriso no América perto da estação Consolação do metrô. Ela contou entusiasmada sobre o Sarau Conversar e me convidou para o primeiro do ano em fevereiro. A sala redonda da loja de artes da Cultura do Conjunto Nacional reunia vinte e poucas pessoas. Entrei sem conhecer ninguém, gostei – onde todas as artes conversam. Li um poema da lista da Lígia, me senti à vontade. Não sei se era Manoel de Barros, Vinícius ou Pessoa.

Sérgio, Veridiana, Leonardo e Vinícius, Neusa, Gerson, Ênio, Stephanie, Ana Luiza, Ângela, dona Vanni, Adriana, Andrea e mais alguns que não lembro o nome. Mil desculpas. E vieram Ricardo, Celine para organizar e trazer gente nova, Nilson fotografando mil caras, Lilian, Carlos Lukos, Carlos da velha terrinha, Márcia, Deise que vence sorteios. Adriana e Ricardo viraram o casal-sarau. A última terça do mês esperada.

Cecilia Meirelles, Fernando Pessoa, Vinícius, Clarice, Adélia Prado, Paschoal da Conceição como alter ego de Mário de Andrade. Terno branco, chapéu, um buquê de margaridas na mão, no primeiro aniversário do sarau. Foi lindo! E Gerson tocou e cantou. Uma noite veio Little Nation. Conversamos sobre a pureza da infância, mudamos para a Cultura do Iguatemi.

Espaço maior, mais de 80 pessoas, muita gente em pé. Juro que preferia o antigo. Cadeiras chiques, arrebentei meus joelhos algumas vezes. Novos músicos. Pagan John, Daniel Salve, o coral da Mercedes-Benz com vozes lindas e gente da melhor qualidade como o Tadeu.  Artistas como Magela Borbagatto e histórias das esculturas coloridas de sua região. As irmãs Klink com aventuras pela Antártica e trabalho em escolas do livro que escreveram. Paulo Caruso, Maria Balé e Marcilio Godoi. Leonel Prata falou sobre edição de livros. A turma sapateante da Simone Capucci veio do interior. Marina Klink contou como começou a carreira de fotógrafa depois de ouvir do marido Amyr: o que você vai fazer com tantas fotos? Na Antártica. Preparou uma pequena vingança. Editou as fotos, publicou o primeiro livro esgotado em poucos dias. Ganhamos nós com tudo isso. Doces, bolos, pães para degustar. Expulsos do espaço de novo.

Voltamos para a Paulista. A Martins Fontes acolhedora, pessoal mais simpático que o da Cultura que perdeu a mão, cresceu demais, nunca recebi um real da venda dos meus livros, mas isso são outros quinhentos, como dizia meu avô.

Quem não gostou de ouvir Breno Lerner e a Última ceia do Titanic? Renata Pallotini, o Vasques? Homenageamos Pessoa. Vimos a arte da Érica Mizutani. Sensível, ouviu uma bronca de um senhor da plateia ao contar que parou de estudar. Abriu a alma, falou sobre vida e trabalho, não para dar satisfação, mas para mostrar a garra pelo sonho de mostrar sua arte.

Mais de 120 pessoas apareceram para ouvir Amyr Klink. Confusão com as inscrições, deu tudo certo. Ufa! Ele disse que não há tempo a perder.

Ricardo Ramos Filho escreve para crianças. Nada fácil ser neto de Graciliano e filho de Ricardo Ramos. Conversei uma tarde com ele sobre meu livro infantil. Super profissional. A Stella Florence falou sobre sua “Loucura de Estimação”. Luiz Ruffato contou como aprendeu a gostar de ler na biblioteca da pequena cidade no interior das Minas Gerais. O carioca José Guilherme Vereza apresentou “O jardim dos anjos” que li quase de uma tacada, daria uma boa minissérie. Teve Xico Sá, Felipe Machado, o fotógrafo Eduardo Figueiredo, textos e poemas do nosso Ricardo, processo criativo da Ana Luiza. Até eu falei demais sobre meus livros! Gerson, voz e violão, anda devagar porque já teve pressa. A Martins Fontes avisou que não havia mais espaço. Como perder clientes numa frase.

Veio a pandemia. Medo. Controvérsias. Negacionismo. Sem abraços, beijos, filhos, netos, passeios, cafezinho na padaria, pizza com amigos. Sequer uma caipirinha. Temos 100 mil mortos. A cultura e as artes, já combalidas, têm que se reinventar.

O Sarau Conversar fez isso. Aqui estamos nós online, firmes e fortes. Valeu Lígia.

Mario de Andrade:

Este feliz desejo de abraçar-te,
Pois que tão longe tu de mim estás,
Faz com que te imagine em toda a parte
Visão, trazendo-me ventura e paz.

Adélia:

Enquanto eu fiquei alegre,
permaneceram um bule azul com um descascado no bico,
uma garrafa de pimenta pelo meio,
um latido e um céu limpidíssimo
com recém-feitas estrelas.

Manoel de Barros:

Poderoso pra mim não é aquele que descobre ouro. 
Para mim poderoso é aquele que descobre 
as insignificâncias (do mundo e as nossas)
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.

Clarice:

Sonhe com o que você quiser. Vá para onde você queira ir.
Seja o que você quer ser, porque você possui apenas uma vida
e nela só temos uma chance de fazer aquilo que queremos.
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce. Dificuldades
para fazê-la forte. Tristeza para fazê-la humana. E esperança suficiente para fazê-la feliz.

Álvaro de Campos (heterônimo Fernando Pessoa):

Não, não quero nada
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna! Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na! Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.

Parabéns todos!

Neta Mello – 23 de julho 2020  

Como eu conheci o Sarau Conversar

Quando a Lígia me pediu este texto, umas sequências de boas lembranças surgiram em minha mente e tentarei compartilhá-las com vocês agora. Era uma terça-feira qualquer como tantas outras, mas algo diferente aconteceu naquela noite. Uma amiga, a Edna, me encaminhou uma foto por WhatsApp com a seguinte mensagem: “Rick, tem um sarau na livraria Cultura do Conjunto Nacional, vamos?”. A imagem continha um cartaz convite escrito: Sarau Conversar, hoje, às 19 horas. Infelizmente, eu já estava quase em casa.

Agradeci a mensagem e o convite, e ela me falou que iria buscar mais informações a respeito. Algumas horas depois, ela disse que o evento acontecia toda última terça-feira do mês, na Loja das Artes, da Livraria Cultura, e combinamos de voltar no mês seguinte. Ela frisou bem: “Você precisa conhecer”.

Era o início do ano de 2015. Época de fervo. Litrão barato eu conhecia vários, agora sarau? Nenhum! Voltamos no mês seguinte. Foi um encanto desde a chegada na loja das Artes, da Livraria Cultura. Ela tinha um perfume tão gostoso, um ar “cult”, as escadas tinham o piso e o corrimão feitos em madeira, num semicírculo que levava até uma sala com paredes de vidro; o piso era de carpete em tom marrom. Tinha um clima intimista.

Lá conhecemos o Paschoal da Conceição, que chegou caracterizado e encarnado de Mario de Andrade. Em outro momento, nos encantamos com o show que a Neusa fez com os alunos dela. Foi muito especial aquela noite. Saudades! O Gerson sempre tocava seu violão e o Sérgio declamava poemas. Tanta emoção nas palavras… era lindo de se ver e, ainda, tinha o Little Nation. Além disso, aprendíamos sobre vários escritores, autores e poetas.

Nos meses seguintes, a turma foi aumentando até que criamos um pré-evento antes do Sarau. O ponto de encontro era na cafeteria Viena que ficava na entrada do Conjunto Nacional. No local, enchíamos o bucho e riamos muito, e, de quebra, ouvíamos música grátis. Tudo isso reunido criava uma atmosfera de muito amor e carinho, onde arrisquei a declamar outros autores no microfone aberto. As mãos tremiam.

O tempo passou, a Loja das Artes já não existe mais, virou um Carrefour Express. Seguimos o Sarau até a Faria Lima, onde conhecemos as filhas do Amir Klink, o cartunista Paulo Caruso e o pessoal da Academia do Pão que nos presenteou com uma grande variedade de delícias e onde iniciei, de forma tímida, a ler meus primeiros escritos. O Sarau é um lugar de boas energias. Fico triste pelos muitos amigos que não vejo mais, mas feliz por fazer parte desta família que não importa onde estejamos, no físico ou on-line, o importante sempre será compartilhar as experiências culturais e pessoas de cada um, e aprender que nem um vírus “made in China” separa amigos de verdade.

Ricardo Silva – 29 de julho de 2020

Galeria de fotos, cliques do fotógrafo Nilson Hashizumi

https://www.flickr.com/photos/nhashizumi/albums/72157710427222401 
 https://www.flickr.com/photos/nhashizumi/albums/72157690888346803 
 https://www.flickr.com/photos/nhashizumi/albums/72157672374260207 https://www.flickr.com/photos/nhashizumi/albums/72157671421537778 https://www.flickr.com/photos/nhashizumi/albums/72157692675295280 https://www.flickr.com/photos/nhashizumi/albums/72157692663547830

Homenagem ao Sarau Conversar

Cada história é única
ainda que tecida num mesmo fio.
Somos todos
Somos todas 
muitas
E queremos ser ainda mais.

Nossa vida clama
pela arte que nos toca
nossa vida chama
por algo que valha a troca

No entre
fica o silêncio.
Afinal, sem o silêncio
a vida não é possível.

Sem pausas
não há continuidade.

É no vazio
que nos preenchemos.
No suspiro entre uma música
e a próxima.
Entre dois versos
de um mesma poema.

Conversar de verdade
e de amor
se dá no espaço entre…
Entre 
a folha
e a palavra.
Ali,
bem escondido
naquele cantinho,
aonde conversam todas as artes,
aonde toca
fundo
o coração.

Stephanie Velozo Crispino – 29/07/2020

Sobre o Amor

Sarau Conversar

A Loucura fez questão de convidar os melhores dos amigos pra brincar, e por entre a conversa e as comidas, propôs que brincasse para acabar: um simples jogo das escondidas.

O que é? Vem a Curiosidade perguntar!

Fica num jogo de até cem contar!

Vou contar até cem, a contar um, dois…

Escondem vocês, depois vou procurar,

O primeiro que achar vai contar depois!

 

Aceitaram todos menos o Medo!

A Preguiça também não quis aceitar,

Não explicando qual era o segredo.

Sem mais aviso, a Loucura vai contar!

 

A Pressa tão rápido se escondeu,

A Timidez tão longe quanto queria,

Muito feliz, para o meio do jardim correu,

De sorriso tão largo a Alegria.

 

No entanto, a Tristeza chorava

Pois não tinha descoberto um lugar,

E a Inveja o Talento segurava,

Na certeza de sítio para brilhar!

 

A Loucura a contar continuou,

De um fiel amigo um instante o move:

O Desespero, que em pânico ficou,

Ao ouvir chegar ao noventa e nove…

 

Cem!! Conta a Loucura e já procurava!

Logo a Curiosidade foi primeira,

Esperar por mais não aguentava.

Em cima do muro a Dúvida estava,

Sem saber o lado da brincadeira.

 

Todos foram aparecendo em sua vez,

Gostaram uns daquilo e outros disto,

A Alegria, a Tristeza, a Timidez.

E o Amor? Pergunta a Curiosidade aos três

Por agora ninguém o tinha visto!

 

Busca a Loucura de toda a maneira

Por pedras, no rio, acima do monte,

Viu a Loucura uma linda roseira,

Junto de arbusto, atrás de uma fonte.

 

Ela com um pauzinho tentou procurar,

Ouviu entre ramos um grito de dor!

E a Loucura inquieta começa a chorar

Rasgando de espinhos os olhos do Amor.

 

Perto de amigos sentiu-se culpada.

Pedindo desculpa, implora perdão,

Sendo-lhe dado sem um sequer senão!

Viverá toda a vida atormentada,

Por entre espinhos de rosa e quanta flor,

No meio de tanta dor, de dor tamanha…

 

E desde então… tornou-se cedo o Amor,

E a Loucura sempre o acompanha!

 

Poema do Carlos Ildefonso, grande amigo e participante ativo do Sarau Conversar

 

 

Trecho

Ana no espelho

Arrumei um pedaço de espelho quebrado.

Encontrado na rua,

 

medo de vir com o azar

Devido sua rachadura

Hoje, depois de um tempo

Encontrei um lugar para ele

Na janela do meu quarto.

Encostado, seu reflexo era eu.

A pessoa que passava nesse trecho da janela

Sou eu.

Era eu que caminhava de lá para cá

Que refletia pelo tom da minha pele,

O horário que estava lá fora

Eu como paisagem interna,

Foi a primeira vez que eu me vi assim.

Fiquei ali sentada de frente

Olhando, olhando…

Às vezes eu ria de mim,

Cantava para mim e não vi medo de soltar algumas lágrimas

Acabei de encontrar a paisagem que eu mais gosto

Em um trecho da minha janela,

O trecho que se refletia em mim.

 

Ana Velozoc, 2019

Estudantes de Artes na ESE

1962: Sausalito por Luiz Ruffato

Luiz Ruffato

Sausalito era um vira-lata que encarnava todas as raças de cachorro existentes. Malhado, branco e amarelo, olhos marrons, nem grande nem pequeno. Manso com as crianças, destemido com os estranhos, tinha uma birra incompreensível contra fardas. Ele sempre nos envergonhava quando via um polícia: agitado, gania, rosnava, gemia. Certa feita, chegou a dispersar uma marcha de recrutas do Tiro-de-Guerra que desfilava pela nossa rua. Sem que percebêssemos, Sausalito avançou entre os soldados, tentando morder suas pernas. Ainda que protegidos por coturnos, alguns se assustaram e saíram de formação, causando enorme reboliço. 

O pai conseguiu atrai-lo de volta para casa e colocou-o de castigo. Isso, no entanto, não impediu que fosse chamado ao quartel, onde levou uma descompostura – dizem que os gritos do tenente podiam ser ouvidos da calçada em frente.Vivíamos sob o tacão da ditadura e o oficial acusava Sausalito de tentar desmoralizar as Forças Armadas.O pai suou para convencê-lo de que nosso cachorro não era um vil subversivo, mas apenas um cidadão inconsciente de seus deveres para com a pátria.

Sausalito ancorou em nossa casa pouco antes do meu nascimento. E morreu velho, caduco, cego e desdentado, quando eu alcançava os quinze anos. Seu desaparecimento, aliás, comoveu a vizinhança. Conhecido no bairro, por onde andava solto com a altivez de proprietário, durante muito tempo ainda as pessoas lembravam dele, evocando sua memória com simpatia. Tão marcante a passagem pela nossa vida que meu pai recusou ter outro cachorro – adotamos gatos, tartarugas, coelhos e até um porquinho-da-índia, mas nunca mais ouvimos latidos no quintal. Às vezes, domingo à tarde, depois de comer um prato de macarronada e beber dois copos de vinho, o pai gostava de rememorar os feitos e contrafeitos de Sausalito, para horror da mãe, que considerava aquilo até pecado. Onde já se viu falar assim de um bicho como se gente fosse…

O pai estimava, particularmente, contar como escolheu o nome do filhotinho, desengonçado e arteiro, que trouxe para morar com a família naquele distante 1962. Na época, já existiam o Zé Carlos, meu irmão mais velho, e a Lurdes, minha irmã do meio. A mãe estava grávida de mim e cismou que os filhos precisavam de um animal de estimação para distraírem-se dela, exausta de cuidar da casa sozinha. Um dia, após bater o cartão de ponto na fábrica de tecidos, o pai encaminhou-se à Vila Minalda, onde lhe disseram que uma cadela havia recém-parido. O pai comprou o cachorrinho malhado – por dois maços de cigarro sem filtro – e trouxe para casa numa caixa de sapatos. Zé Carlos e Lurdes, seis e três anos, encantados, logo se apropriaram dele.Mas faltava batizá-lo e o pai, teimoso, quebrava a cabeça, Um nome é para sempre, explicava para a mãe, um nome define uma pessoa. Mas ele não é uma pessoa, a mãe contra-argumentava, irritada.

O frio de junho rachava os lábios e enregelava as mãos. A bola rolava nos estádios do Chile, e o pai ouvia a transmissão dos jogos da Copa do Mundo na voz de Oduvaldo Cozzi, da Rádio Guanabara. O Brasil vinha de duas vitórias, contra México (dois a zero) e Espanha (dois a um), e um empate sem gols com a Tchecoslováquia. Naquele domingo, enfrentávamos a perigosíssima Inglaterra pelas quartas-de-final.De repente, o juiz francês Pierre Schwinte paralisa a partida – um cachorro invadiu o gramado!  O goleiro Springett tenta pegá-lo, mas o cachorro corre em direção ao meio do campo, onde Garrincha, ao cercá-lo, é humilhado com um drible sensacional. Até que Jimmy Reaves se põe de quatro e com jeito consegue envolvê-lo em seus braços. 

Afastando-se do rádio Semp, o pai moveu-se até a cozinha, onde a mãe terminava de lavar as vasilhas do almoço. Luzia, ele disse, vai chamar Sausalito. O quê?, a mãe perguntou, aflita. O cachorrinho, Luzia, vamos chamar ele de Sausalito. E lá isso é nome de cachorro, Mário? O cachorro driblou o Garrincha, Luzia, o Garrincha! Que cachorro, homem? O cachorro, no Chile, no jogo… Mas a mãe já tinha perdido a paciência e não escutava mais o que o pai falava. Ele, no entanto, previa dias gloriosos para o Sausalito, nome do estádio em que o Brasil, vencendo aquele jogo da Inglaterra, arrancaria para se tornar bicampeão mundial, uma semana depois…

Publicado originalmente para o Portal Uol

https://www.uol/copadomundo/especiais/copa-brasileira-de-letras-1962-luiz-ruffato-.htm#1962-sausalito

Baile do Trianon

Lembra-se do termo “chá de cadeira”? As meninas e adolescentes do século 21 não sabem o que significa tomar um chá desse tipo. Até os anos 60, digo 1960, em festas ou bailes, eram os homens que “tiravam” as mulheres para dançar. Elas podiam até recusar, o que não era nada educado, mas nunca podiam pedir para dançar com um homem sem ter sido convidada. Machista? As mulheres muito altas, menos bonitas, eram “esquecidas”, tomando chá nas cadeiras que circundavam os salões e todas eram muito bem observadas pelos pais onipresentes. Sim, os pais acompanhavam as filhas para saber com quem e como dançavam – guardiões do recato e virgindade das filhas casadoiras! Os irmãos mais velhos podiam substituir o pai, mas o objetivo era o mesmo.

Para não deixar que as histórias se percam, conto uma história da família e de um encontro que durou mais de cinquenta anos, graças à rebeldia de uma paulistana de lindos olhos azuis que deu um jeitinho bem brasileiro de desrespeitar a regra contada acima. Na Avenida Paulista, onde hoje vemos o MASP, havia um terraço-mirante com vista para o centro da cidade – o Vale do Saracura, atual Avenida 9 de julho. Abaixo do terraço, um salão de chá e de bailes projetado pelos arquitetos Ramos de Azevedo e Ricardo Severo. Foi demolido na década de 1950 e deu lugar ao projeto de Lina Bo Bardi que teve que respeitar uma cláusula do antigo proprietário – manter o belvedere aberto ao público – daí o enorme vão livre do museu famoso (isso já é outra história).

O Trianon, como era chamado o conjunto de terraços e o salão de festas, recebia a fina flor da sociedade paulistana. Filhos dos grandes barões do café ou dos que aplicavam a fortuna do ouro negro nas primeiras indústrias de São Paulo ou em casas comerciais de importação desde automóveis até tecidos, móveis e tudo o que ainda não era fabricado por aqui. Nos anos 20, havia um chá dançante todas as 5as e domingos no Trianon. Terminava pontualmente à meia-noite. Não ficava bem sair depois disso. As moças usavam vestidos “charleston” na época – última moda em Paris – e chapéus pequenos e delicados.

E foi assim, lá pelo ano 1923 ou 1924 que minha avó foi com os pais e o irmão mais velho a um chá dançante no Trianon. Ao entrar, viu um rapaz de cabelos escuros penteados para trás e sobrancelhas grossas. Todas as moças tinham um bloquinho, o carnet, onde anotavam os nomes dos rapazes e a dança prometida a cada um. Como já contei, eram eles que chegavam perto da moça, faziam um cumprimento abaixando a cabeça e perguntavam em voz alta, para que os pais dela ouvissem – a senhorita me daria o prazer dessa dança? Ela anotava em seu carnet .
Nessa noite, três rapazes pediram para dançar com ela. Minha avó escreveu os nomes e tratou de guardar o carnet na bolsinha pendurada no braço. Cada vez que um rapaz se aproximava, ela dizia – sinto muito, meu carnet já está todo tomado.

Chamou o irmão mais velho, Arnaldo, que conversava com amigos. Quando Maria Antonietta Seabra Camargo queria alguma coisa, ia até o fim! Preciso saber o nome daquele rapaz encostado na coluna e quero que você converse com ele e dê um jeito de trazê-lo até aqui.

O irmão mais velho suspirou fundo e, docemente constrangido, saiu para cumprir a tarefa. De longe, ela acompanhava todos os movimentos do salão. O baile, propriamente dito, ainda não tinha começado. Serviam-se sucos e docinhos até que todos os pares já tivessem as danças marcadas. O irmão voltou com todos os dados. Chama-se Clovis Joly de Lima, tem um escritório de corretagem de café e mora em Santos. É comprometido? Não, solteiríssimo. Os olhos azuis soltaram faíscas!

A versão de meu avô era um pouco diferente. Ele era tímido, tinha sido convidado por um amigo, filho de um fazendeiro cliente da corretora de café. Contou que também bateu os olhos naquele rosto redondo de duas contas azuis assim que ela entrou. Quando Arnaldo apareceu, já sabia o nome da moça, dos pais e até onde moravam. Por sorte, o amigo conhecia a família Camargo, eram parentes distantes de Tietê, no interior de São Paulo.

O grupo de rapazes atravessou o salão e veio cumprimentar Sr. Agenor e Dona Alzira. Meu avô se apresentou e, minutos depois, pediu uma dança a minha avó que, rapidamente, abriu o caderninho e anotou o nome Clovis na 4ª dança da noite.

O baile começou. Antonietta dançou as primeiras músicas com três rapazes conhecidos da família. Ela ficou de olho no salão o tempo todo. Quem iria dançar com Clovis antes dela? Pobrezinhas, pensou ela, nunca mais dançarão com ele de novo!

Os dois dançaram a 4ª e a 5ª dança. Dona Alzira se levantou e antes que a 6ª música começasse andou até o meio do salão e puxou a filha pelo braço – minha filha, você não pode dançar mais de uma vez com o mesmo rapaz! E por que não, mamãe? Não fica bem, todos vão notar. Ninguém mais quis dançar comigo hoje, mamãe. Deixe-me ver seu carnet. A filha foi buscar. Era verdade. A mãe não podia acreditar. Em todos os bailes a filha tinha um fila de pretendentes. Arnaldo, meu filho, convide o rapaz para sentar conosco e tomar um licor. Se fosse hoje, minha avó gritaria um YES no meio do salão! O truque funcionou.

A paixão avassaladora fazia meu avô tomar o trem todos os sábados (naquele tempo trabalhava-se no sábado) para passar o fim de semana em São Paulo. Dois anos depois, a noiva teve que se mudar para Campos do Jordão por problemas de saúde. O casamento teve que ser adiado. Ela dizia para os netos que tinha tido uma inflamação na pleura, mas sabemos que o médico a mandou para o ar limpo de Campos por causa de uma tuberculose. A família toda foi para a Villa Maria Antonietta (a placa aparece na foto). A casa ainda existe, fica no centro de Capivari. Meu avô tomava o trem em Santos até São José dos Campos e lá, outro para Campos do Jordão. Uma vez, o trem saiu com atraso de Santos. Ele chegou em São José dos Campos e o trem para Campos já tinha partido. Andou pelos trilhos até lá só para ver minha avó!
Casaram-se em abril de 1928. Em 1978 fizeram Bodas de Ouro. Ela morreu em julho do mesmo ano. Ele, em janeiro de 1979.

Neta Mello
Junho 2007

A Neta é historiadora e escritora, participa do Sarau Conversar quase desde o seu começo em 2014.

Vão rareando!

caranguejo na RIvi 2013

Eu queria ter sete,

Apenas sete nada mais do que sete

Poderia ser apenas por um dia,

Mas eu queria ter sete anos de idade.

 

Aos sete anos os adultos parecem

Tão decididos e inteligentes

Com conversas agradáveis,

Bem, eu imaginava isso aos sete anos.

 

Hoje aos quarenta e três, vou dizer:

E percebam a minha indignação

Com a vida adulta é tanta que nem esperei chegar

Aos quarenta e sete para rimar.

 

Como são chatos, inclusive eu.

É uma imaturidade de fazer inveja

A qualquer criança de sete anos.

Ave Maria! Gente chata…

 

Gostava tanto quando eu tinha sete

Não existiam TVs de quatro K

Ou mesmo celular

Para se trocar de canal da TV o caboclo tinha que se levantar

 

E telefonar então, só na casa do vizinho ou no orelhão,

Que ficava na porta da venda do Seu Daniel

E a TV era preta e branca!

Vejam o absurdo! A pessoa tinha adivinhar qual a cor da roupa da moça na novela das sete.

 

Tínhamos que usar a imaginação, que saudade!

Quando eu era criança eu corria no pátio da escola

Mas hoje em dia se corre para que?

Não vejo necessidade. Deus me livre e guarde!

 

Estou chato eu sei! Na verdade tudo isso é pura saudade e tristeza

Saudades das novidades que a vida aos sete anos traz.

Saudades da ingenuidade

E tristeza que hoje, aos quarenta e três, tudo vira apenas modinha.

 

O ruim de envelhecer é perceber

Que o novo já nasce velho

E as novidades tem que ser garimpadas

E com o tempo, vão rareando.

Escrito por Ricardo Silva

O DNA da DR

abertura blog dançarinos

De Fernando Vasqs

Vasqs é cartunista, chargista, ilustrador, quadrinista e redator de humor. Ele está sempre presente nos encontros do Sarau Conversar. 

 

A sigla DR, Discutir a Relação, foi inventada, claro, por um casal.

Ela queria CF, Conversa Franca.

Ele queria PF, Papo Furado.

Ela queria PTL, Passar Tudo a Limpo.

Ele não queria PCC, Porra de Conversa Chata!

Ela queria DRDVC, Discussão da Relação, Depois Vamos pra Cama.

Dessa ele gostou, mas propôs SPDC, Sem Papo, Direto pra Cama.

Ela se manteve inflexível.

Ele, como tinha sexo, cedeu.

Os homens sempre cedem – e propôs só DR.

Ela topou.

Entre os amigos, ele chamava de Droga do Ramerrame.

 

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